Defender a água como sujeito de direito: uma causa que percorre rios, territórios e consciências.

A água tem voz. Essa foi a convicção expressa durante o curso virtual “Água e vida na Pan-Amazônia: Resistência, Direitos e Esperança”, em sua quinta jornada, organizado pela Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam), no qual se refletiu sobre os avanços e desafios dos direitos da natureza, especialmente no que diz respeito aos corpos d’água na Amazônia.

Por: Micaela Díaz – ADN CELAM

Com a mediação de Lily Calderón, membro da Repam, Natalia Greene, Bárbara Fraser e Johny Giffoni compartilharam experiências, análises e propostas em uma conversa que deu visibilidade a uma realidade tão urgente quanto esperançosa.

A primeira intervenção foi da cientista política equatoriana Natalia Greene, diretora global da Aliança Global pelos Direitos da Natureza (GARN). Em sua exposição, explicou que o reconhecimento dos direitos da natureza busca “transformar a consciência humana” e criar marcos jurídicos que garantam uma relação harmoniosa com a Mãe Terra.

Greene lembrou que o Equador foi o primeiro país do mundo a reconhecer em sua Constituição que a natureza é sujeito de direitos. Desde então, “40 países avançaram com os direitos da natureza; 22 têm avanços legais e 18 têm projetos”, o que, segundo ela, demonstra que esse movimento se expandiu globalmente.

Destacou também o papel da água como eixo central desse processo: “O maior crescimento de casos dos direitos da natureza no mundo ocorre por meio dos corpos d’água”. Mencionou exemplos como o reconhecimento do rio Machángara, no Equador, onde o rio foi simbolicamente levado ao tribunal, e a jurisprudência conquistada para proteger os manguezais e tubarões no país.

Greene afirmou que essa luta também ocorre em cenários internacionais: “Realizamos tribunais dos direitos da natureza no Brasil, Peru, Chile e Equador”. Um dos casos internacionais mais relevantes foi a recente opinião consultiva OC-32/23 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reconheceu os direitos da natureza: “É como se tivéssemos mudado a Constituição de todo o Sistema Interamericano”.

Ela concluiu incentivando a união de esforços rumo à COP 30, em Belém (Brasil), propondo uma Declaração dos Direitos da Amazônia e lembrando que esse bioma não é apenas “o pulmão do planeta”, mas também “as veias vivas do planeta” por causa dos seus rios voadores. “Somos natureza que se defende”, disse.

A jornalista ambiental Bárbara Fraser, residente no Peru, compartilhou dois casos paradigmáticos que evidenciam a tensão entre os avanços legais e os desafios de implementação. O primeiro foi o caso do rio Marañón, onde “um grupo de mulheres Kukama se formou em questões de direitos” e conseguiu que o rio fosse reconhecido como sujeito de direitos. No entanto, explicou que ainda há muito a ser feito: “Não é tão fácil implementar. Falta vontade política para estabelecer comitês de gestão de bacias”.

O segundo caso, no distrito de Punchana, em Iquitos, mostra uma situação crítica de poluição por esgoto urbano. Apesar de a população ter vencido uma ação constitucional que obriga o Estado a garantir água potável e saneamento, a falta de coordenação entre instituições e as lacunas legais impediram sua execução: “Cada entidade é um silo, é difícil que se articulem. E se não estão mencionadas na ação, não são convocadas”.

Fraser também abordou como a percepção de risco, por exemplo em zonas alagáveis, dificulta o planejamento de projetos de infraestrutura nos contextos urbanos amazônicos: “Viver em zona alagável não é arriscado para quem veio de comunidades”, afirmou, questionando as categorias oficiais que ignoram as realidades culturais das populações amazônicas.

A jornalista apresentou ainda dados preocupantes: apenas 50% da população da América Latina tem acesso a água potável gerida sem risco, e o percentual de águas residuais tratadas de forma adequada continua baixo. “A proporção de corpos d’água de boa qualidade caiu. Em um contexto de mudança climática, isso é muito preocupante”, expressou.

Fraser anunciou a realização da Cúpula Amazônica da Água, marcada para outubro, em Iquitos. Convidou representantes de todos os países a compartilhar experiências e construir estratégias comuns: “Podemos unir esforços para proteger mais os ecossistemas dos rios, como um direito de todos os seres humanos e não humanos a ter água limpa e segura”.

O defensor público brasileiro Johny Giffoni encerrou a sessão com uma exposição no campo jurídico. Lembrou que as leis “não são fruto de concessões, são fruto de lutas” e alertou que, muitas vezes, quem as aplica, especialmente nas cortes supremas, pertence a setores que favorecem interesses extrativistas. Giffoni apresentou o conflito entre dois paradigmas jurídicos: “O direito da natureza como sujeito e o direito ambiental como objeto”, algo que também interpela as igrejas e sua compreensão teológica da criação.

Destacou avanços no Brasil, como a legislação do município de Guajará-Mirim, que reconheceu os direitos do rio Lage (Komimi Memé), e a criação de um comitê comunitário guardião. No entanto, advertiu que muitas normas ainda não rompem com o paradigma extrativista: “É um reconhecimento real ou apenas brechas dentro do direito ambiental tradicional?”, questionou.

O defensor mencionou mais de 20 projetos de lei em tramitação no Brasil e indagou como são implementados se, ao mesmo tempo, se promove um projeto de lei de licenciamento ambiental que facilita a exploração. “De que adianta reconhecer direitos no âmbito local se no nível federal eles são minados?”, refletiu.

Giffoni concluiu propondo uma análise dos conflitos que emergem ao tentar aplicar a ecojurisprudência em contextos de desigualdade estrutural, incentivando a construção de estratégias jurídicas a partir de uma perspectiva ancestral, cosmológica e plurinacional.

A jornada, moderada por Lily Calderón, deixou uma mensagem de esperança: a água, os rios, a Amazônia e toda a natureza estão sendo defendidos por comunidades, mulheres, povos indígenas, redes internacionais, juristas e ativistas que compreendem que não há justiça sem natureza, e não há futuro sem água.